abril 14, 2004

STEINER. Caro João: O «we have no more beginnings» de Steiner é, precisamente, o centro de uma tragédia. E, também pode ser, dessa tragédia. Razão porque o governo de Lula não pode começar: ele já começou uma vez. O facto de Steiner se ter interessado de forma tão dramática pelas questões de tradução e de precisão tem a ver com isso mesmo. Um dos problemas das utopias do século XX, lidas ao longo da história política recente, toca nesse ponto misterioso: por que razão se insiste tanto na validade das utopias depois de se verificar a sua corrupção e o seu rasto de caos? Saramago deu uma resposta, na altura da queda do regime soviético: não, «ainda não era aquilo», mas a utopia continua de pé. Mas, se ainda não era aquilo desde há tanto tempo, porque levou outro tanto tempo a admitir a existência dessas ruínas? Lendo bem as três utopias centrais da Europa (a de More, a de Campanella e a de Bacon), elas não são apenas o retrato desse nenhum lugar de onde deriva a própria palavra utopia, mas a insistência em nenhum homem possível, pois nenhuma delas é humana: imensamente religiosas, têm no centro um Estado poderoso (para Campanella e Bacon, sobretudo), uma fé demolidora, uma ideia de sociedade uniforme ou uniformizada, relacionada não apenas com o bem comum mas, também, com o comportamento comum (para coisas como a oração, o sexo, a procriação, a música, o trabalho, a festa, a alimentação, a educação dos filhos). Mas, sobre todas as coisas, a ideia de que as pessoas são sensatas e de que viverão de acordo com os seus princípios (Rabelais, rindo das utopias, sabia que isso nunca iria acontecer, mas ele tinha vivido depois de Calvino e da violenta Genebra de Calvino, onde toda a dúvida era condenada). Justamente, uma das coisas que inquieta Steiner (sobretudo em O Castelo do Barba Azul) é a natureza do absurdo que os homens são capazes de gerar. Poderemos começar outra vez?