abril 22, 2004

TUDO VAI DO COMEÇAR. [Actualização às 17:37 de 23.04.2004] A poesia do barroco merece ser lida; no meu caso «vai do começar», para uma maratona de voltar páginas sobre páginas. A do barroco brasileiro é infelizmente pouco conhecida entre portugueses – mas é uma pena. Um dos personagens literários mais fascinantes do século XVII baiano é Gregório de Matos, que mereceu a alcunha de «o Boca do Inferno» (nasceu em Salvador em 1636, morreu no Recife em 1695 e a sua obra completa está publicada pela Record, mas existe uma edição anterior, da Cultrix, com os cuidados de José Miguel Wisnik) e que escreveu em verso quadros excelentes da vida baiana de seiscentos. [Para mais descrições, já agora, veja-se o novo livro de Fernando Campos, O Prisioneiro da Torre Velha (edição da Difel), um romance acerca de Francisco Manuel de Melo, onde se encontram algumas passagens pela Bahia]. Um dos textos mais vergonhosos da versalhada anti-clerical de Gregório de Matos, aliás «o Boca do Inferno» leva o título «A certo Frade na Villa de Sam Francisco, a quem Hua Moça fingindose Agradecida à seus repetidos Galanteyos, Lhe mandou em simulações de Doce huma panella de merda» (não o reproduzo hoje…), em plena onda da sátira sua contemporânea. Tem alguns sonetos quase correctos (na mesma onda satírica, o que dedicou à ilha de Itaparica: «Ilha de Itaparica, alvas areias,/ Alegres praias, frescas, deleitosas;/ Ricos polvos, lagostas deliciosas,/ Farta de putas, rica de baleias.// As putas tais, ou quais não são más preias,/ Pícaras,ledas, brandas, carinhosas,/ Para o jantar as carnes saborosas,/ O pescado excelente para as ceias.[…]»), mas o mais canónico de todos, com a sua habitual imperfeição do último verso (ou, muitas vezes, o corte abrupto do último terceto), é «Nasce o Sol, e não dura mais que um dia», também conhecido como «A inconstância dos bens do mundo»:

«Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.»